Introdução: A Realidade Urbana e o Onde o Verde se Esconde
Com mais da metade da população mundial vivendo em áreas urbanas, o crescimento das cidades é inegável. Na América Latina, a maioria da população reside em centros urbanos, sendo a Colômbia um país onde cerca de 81% da população vivia em áreas urbanas em 2020.
Mas enquanto nossas cidades crescem, elas estão crescendo de forma justa? A floresta urbana — o conjunto de árvores de rua, parques e jardins — é muito mais do que um elemento decorativo; é uma fornecedora essencial de qualidade de vida e serviços ecossistêmicos17. No entanto, um estudo pioneiro realizado em Cali, Colômbia, a terceira maior cidade do país, revelou que a distribuição desses bens ambientais vitais é dramaticamente desigual, estando diretamente ligada à realidade socioeconômica dos bairros.
Essa descoberta levanta uma questão crucial de justiça ambiental: será que o direito de respirar ar puro, se refrescar e ter acesso a espaços de lazer é distribuído de forma equitativa em nossas metrópoles? Artigo publicado na revista Urban Forestry & Urban Greening discute esses tópicos.
Os Superpoderes Inegáveis das Árvores Urbanas (Serviços Ecossistêmicos)
Por que a ausência de árvores é um problema sério? As florestas urbanas são elementos cruciais para a saúde e bem-estar humano, fornecendo diversos benefícios:
Cali e a Estratificação Social: Um Mapa de Iniquidade
O estudo analisou as 22 comunas (bairros) de Cali, usando um indicador tradicional na Colômbia: a Estratificação.

Fonte: Shiraishi, 2022.
O Que é Estratificação?
A estratificação é um sistema socioeconômico que classifica as residências e bairros em uma escala de 1 a 6, usado para determinar subsídios a serviços públicos.
• Estratificação 1: Corresponde a moradias de renda muito baixa, com pouca ou nenhuma infraestrutura urbana.
• Estratificação 6: Representa moradias de alta renda, com acesso a infraestrutura e serviços públicos muito bem desenvolvidos.
Ao aplicar a análise de regressão linear, o estudo buscou as correlações entre essa divisão socioeconômica e o acesso ao verde.
A Conexão Chocante: Renda e Acesso a Parques
Os resultados mostraram que o índice de estratificação é um preditor poderoso da quantidade de verde disponível.
A correlação mais impressionante foi encontrada na área de parques públicos:
1. Parques Per Capita: O coeficiente de correlação (R) entre a área de parque por habitante e a estratificação foi de 0,980. Este valor extremamente alto demonstra que o acesso a parques públicos é quase diretamente determinado pela riqueza do bairro.
2. Exemplos Extremos: Enquanto a Comuna 22, de alta renda (Estratificação 6), desfruta de 15,2 m² de parque público por pessoa, a Comuna 1, de baixíssima renda (Estratificação 1) possui apenas 0,1 m² per capita.
Além disso, a cobertura total de copas de árvores também se correlacionou fortemente com a estratificação, com um coeficiente R de 0,72.
O Peso das Árvores Privadas e a Densidade Populacional
A desigualdade não se manifesta apenas nos espaços públicos, mas também nos privados, exacerbando o problema nos bairros mais pobres.
Enquanto bairros de baixa e média renda raramente possuem jardins privados — muitas vezes com pátios frontais pavimentados para estacionamento, sem espaço para árvores — bairros ricos demonstram o oposto. Na Comuna 22, por exemplo, as árvores residenciais (privadas) em casas abastadas com grandes jardins representam quase 20% da cobertura arbórea total do bairro.
Nos bairros mais pobres, como a Comuna 14, que é a mais densamente povoada de Cali (35.031 pessoas por km²), há uma combinação perigosa: alta densidade populacional, pouquíssimas árvores públicas e quase nenhuma árvore privada. Essa concentração populacional em áreas com menor acesso a serviços ecossistêmicos piora as condições de vida e aumenta a injustiça ambiental.
Por Que Acontece? As Raízes da Iniquidade em Países Emergentes
A distribuição desigual observada em Cali não é acidental, mas um reflexo de complexos fatores históricos e urbanísticos comuns em países emergentes:
• Falta de Planejamento: Muitas áreas de baixa renda foram construídas com alta densidade habitacional através de processos legais ou ilegais, sem o planejamento adequado para espaços verdes públicos.
• Fragilidade Institucional: O processo de urbanização na América Latina é dinâmico, influenciado por complexos fatores geopolíticos, pobreza e instituições de planejamento e governança fracas.
• Geografia da Pobreza: Bairros mais pobres foram frequentemente construídos em encostas íngremes (como as Comunas 1, 18 e 20). Nestas áreas, há menos amenidades urbanas, incluindo áreas verdes planejadas.
• Desconhecimento do Valor: Há uma falta de conhecimento do valor da floresta urbana e das habilidades de planejamento e gestão de florestas urbanas nos governos municipais locais e entre os cidadãos.
Plantando Equidade: Como Mudar o Jogo
O estudo de Cali não apenas aponta o problema, mas também sugere caminhos para reduzir essa iniquidade e construir cidades mais justas:
1. Reconhecimento do Valor: O governo municipal e os cidadãos devem reconhecer o valor e os múltiplos benefícios dos serviços ecossistêmicos fornecidos pela floresta urbana e incorporá-los ativamente no planejamento da cidade.
2. Estratégias Orientadas à Equidade: O planejamento deve focar em aumentar estrategicamente os serviços (como o plantio de árvores) em áreas desfavorecidas que atualmente possuem cobertura arbórea extremamente baixa. Isso é conhecido como uma abordagem orientada à equidade, que prioriza a necessidade, em vez de uma distribuição igual (que ignora as disparidades existentes).
3. Participação Pública Engajada: É fundamental que o plantio de árvores e o planejamento de parques sejam um processo participativo, coletivo e local, envolvendo ativamente os grupos socioeconômicos desfavorecidos e comunidades marginalizadas que mais precisam desses benefícios.
Pontos-Chave e Curiosidades
• Recorde de Iniquidade: O grau de correlação (R=0.980) entre a área de parque per capita e a estratificação em Cali é um dos indicadores mais claros da iniquidade ambiental urbana já registrados.
• Cidades Emergentes: Este é um dos primeiros estudos a analisar a iniquidade da floresta urbana especificamente em um país latino-americano usando essa metodologia.
• O Lado Negativo da Natureza (Disserviços): Embora raras, as árvores urbanas podem apresentar “disserviços ecossistêmicos”, como a emissão de compostos que podem contribuir para a formação de smog (BVOCs) ou a liberação de pólen alergênico. No entanto, o estudo afirma que os benefícios superam amplamente os malefícios.
• A Pobreza nas Encostas: A migração interna para Cali resultou na expansão da periferia em áreas de encostas íngremes (Comunas 1, 18 e 20), locais que naturalmente já têm menos amenidades urbanas e espaços planos para parques.
Conclusão: Construindo Cidades Mais Justas para Todos
O estudo realizado em Cali oferece uma visão crítica e valiosa: em países emergentes, o acesso aos benefícios vitais da natureza urbana não é um direito universal, mas um privilégio fortemente associado ao poder aquisitivo e à localização social. A distribuição desigual de árvores e parques é um reflexo direto da iniquidade socioeconômica e do histórico de planejamento falho.
No entanto, há esperança. Ao reconhecer o valor imenso da floresta urbana e adotar estratégias orientadas à equidade no planejamento municipal, as cidades podem começar a reverter este cenário. Abordar a iniquidade ambiental da floresta urbana é, no fim, uma estratégia de desenvolvimento que visa criar cidades mais saudáveis, mais seguras, mais resilientes e mais justas para todos os seus cidadãos.
Referencias
SHIRAISHI, Kinya. The inequity of distribution of urban forest and ecosystem services in Cali, Colombia. Urban Forestry & Urban Greening, v. 67, p. 127446, 2022.



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