O avanço da urbanização tem sido implacável. Desde o êxodo rural, especialmente no Brasil a partir dos anos 60, nossas cidades cresceram em tamanho e densidade, concentrando a vida de quase 95% da população urbana brasileira. Contudo, esse crescimento acelerado não veio acompanhado de planejamento igualitário. O resultado? Uma acentuada desigualdade no acesso a serviços essenciais, incluindo um dos mais vitais: as áreas verdes.
Em um mundo cada vez mais afetado pelas mudanças climáticas, a presença de vegetação urbana — as nossas florestas urbanas — torna-se fundamental para mitigar impactos locais e garantir nossa qualidade de vida. Mas como garantir que todos os cidadãos, independentemente de onde moram ou de quanto ganham, tenham acesso equitativo a essa infraestrutura verde?
Um estudo inovador, realizado em uma cidade brasileira de médio porte, Cachoeiro de Itapemirim, utilizou a aclamada diretriz internacional 3-30-300 para responder a essa pergunta. Prepare-se para conhecer os resultados que mapeiam a desigualdade verde em nossas cidades.
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No entanto, o estudo científico ressalta que a distribuição desses benefícios não é uniforme, refletindo disparidades socioeconômicas significativas23. Em geral, bairros com maior renda per capita tendem a ter melhor cobertura de copa e mais acesso a áreas verdes, perpetuando o que a ciência chama de “privilégio verde”16….
Entendendo a Regra 3-30-300: O Padrão Ouro da Ecologia Urbana
Desenvolvida por Konijnendijk (2023) com base nas diretrizes de Soluções Baseadas na Natureza (NBS), a regra 3-30-300 é um referencial simples e poderoso para o planejamento sustentável. Logo, o objetivo é melhorar a saúde das florestas urbanas e promover o bem-estar humano e a biodiversidade.
A regra estabelece três metas claras para qualquer área urbana:
A Visão de Três Árvores (Critério 3)
A primeira meta exige que toda residência deve ter visibilidade para pelo menos 3 árvores.
No estudo brasileiro, os cientistas foram meticulosos: eles consideraram que as árvores deveriam estar a uma distância máxima de 18 metros do lote residencial para garantir essa visibilidade, até mesmo para indivíduos com certas condições visuais. Essa escolha metodológica busca a universalidade do acesso visual à natureza.
A Cobertura de Copa Ideal (Critério 30%)
A segunda meta indica que os bairros devem ter, no mínimo, 30% de Cobertura de Copa (ou Cobertura Arbórea).
A cobertura de copa é crucial para a regulação climática e a provisão de serviços ecossistêmicos. Alcançar esse patamar pode ser um desafio em áreas densamente construídas ou onde a arborização foi suprimida em vez de plantada.
O Acesso ao Parque (Critério 300m)
O último pilar exige que uma área verde pública de qualidade esteja localizada a no máximo 300 metros de qualquer residência.
O acesso fácil a parques e praças é essencial, pois esses locais não só cumprem uma função ecológica importante, mas também são vitais para atividades de convivência e a função social como local de reunião. Estudos mostram que o acesso a essas áreas verdes de qualidade influencia positivamente a saúde da população.

Fonte: Território Secreto
O Estudo de Caso Brasileiro: Resultados Chocantes de Desigualdade
Os pesquisadores aplicaram a regra em 9 bairros de Cachoeiro de Itapemirim, divididos em três grupos de renda. A hipótese inicial era que a alta renda se beneficiaria de maior quantidade e qualidade de vegetação urbana.

Fonte: Arboriculture & Urban Forestry
O achado mais importante e preocupante foi: Nenhum dos bairros avaliados—independentemente da renda—cumpriu integralmente os três critérios da regra 3-30-300.
Critério 3: Árvores Próximas – Um Problema Universal
Apesar das diferenças de renda, o problema de falta de árvores próximas foi generalizado. Não houve diferença estatística entre os grupos de renda na porcentagem de lotes que tinham as 3 árvores próximas (dentro dos 18m).
• Bairros de Alta Renda: 42,1% dos lotes cumpriam o critério.
• Bairros de Baixa Renda: 40,07% dos lotes cumpriam o critério.
Isso demonstra que a meta de garantir três árvores visíveis a cada residência não está sendo atingida em nenhuma classe socioeconômica, refletindo a distribuição assimétrica da arborização e a dificuldade de alocar árvores em centros urbanos com planejamento deficiente.
Critério 30: Cobertura de Copa – O “Privilégio Verde” em Detalhes
Quando se analisou a cobertura de copa total (incluindo áreas públicas e privadas), a maioria dos bairros ficou abaixo dos 30%.
A única exceção foi o Bairro H (Baixa Renda), que atingiu impressionantes 42,68% de cobertura de copa. No entanto, os pesquisadores apontam que isso não é resultado de um bom planejamento urbano, mas sim de sua urbanização incompleta, mantendo grandes fragmentos da matriz florestal original da região.
A verdadeira desigualdade se manifesta ao isolar a cobertura de copa em vias públicas (PPC):
• Bairros de Alta Renda apresentaram a maior média de PPC (5,61%).
• Bairros de Média Renda ficaram com 2,88%.
• Bairros de Baixa Renda registraram a menor média (2,60%).
Essa diferença evidencia o privilégio verde: a arborização viária, que é responsabilidade do poder público, está concentrada nas áreas mais ricas. Políticas públicas específicas podem resultar em arranjos que beneficiam as classes sociais mais influentes, gerando a implementação da floresta urbana de forma desigual.
Critério 300: Acesso a Áreas Verdes Públicas – O Abismo da Desigualdade
A maior discrepância socioespacial foi observada no acesso a praças e parques públicos.
Enquanto os bairros de Alta Renda possuíam 11 áreas verdes públicas, garantindo que 88,94% dos lotes estivessem a 300m de distância, a situação se inverteu drasticamente na outra ponta da escala.
Nos bairros de Baixa Renda, a média de acesso ficou em apenas 15,91%. O estudo revelou que três bairros (C, G e I) não tinham sequer uma única praça pública dentro de seus limites territoriais.
A única nota positiva veio de um bairro de Média Renda (Bairro F), onde 100% das residências estavam a 300m de uma área verde pública, sendo este o único a cumprir integralmente este critério.
Curiosidades e Pontos Principais
• O “3” Falhou Geralmente: Quase 60% dos lotes residenciais, em todos os estratos de renda, não tinham a visibilidade de 3 árvores em até 18 metros.
• O Campeão Inesperado: O Bairro H (Baixa Renda) só superou a meta de 30% de cobertura de copa porque não está totalmente construído, mantendo fragmentos da floresta natural.
• Privilégio Financiado: A infraestrutura de arborização de ruas (cobertura de copa pública) nos bairros de alta renda (5,61%) é mais do que o dobro da encontrada nos bairros de baixa renda (2,60%).
• Acesso Mínimo: Apenas 15,91% dos moradores de bairros de baixa renda estavam dentro do raio de 300 metros de uma praça pública.
Conclusão: Políticas Públicas para um Futuro Mais Justo
Os resultados deste estudo em Cachoeiro de Itapemirim confirmam que as diretrizes internacionais, como a Regra 3-30-300, são ferramentas válidas para medir o progresso e identificar falhas na infraestrutura verde, mesmo em contextos brasileiros com urbanização não planejada.
Apesar de a qualidade da vegetação não apresentar grandes diferenças entre os grupos de renda, as disparidades na quantidade e proximidade das áreas verdes são gritantes. O acesso à natureza é um direito transindividual, e sua distribuição desigual perpetua discrepâncias na qualidade de vida dos cidadãos.
É imperativo que as autoridades municipais desenvolvam estratégias equitativas e inclusivas para a expansão e manutenção das áreas verdes urbanas. O futuro de nossas cidades, em termos de resiliência climática e saúde pública, depende de políticas que garantam que o acesso aos benefícios da natureza não seja determinado pelo CEP ou pelo nível de renda.



Artigo bem fundamentado. Ótimo estudo para reflexão e ação em futuras iniciativas públicas e privadas! Parabéns!!!
Artigo muito bem feito e esclarecedor, além de escancarar a disparidade existente no país.